quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Poesia, futebol e coincidências.

Por Ricardo Lacerda


Quantas vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez sem lembrança, sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te, centaura, em regiões contrárias, num meio-dia queimante: era só o aroma dos cereais que amo.

Não se deve tentar entender ou interpretar poesia. Esquece isso, vamos adelante. Os versos são de Neftalí Ricardo Reyes. Conhece? Tentemos, então, o nome de guerra: Pablo Neruda, o grande poeta chileno, Nobel de Literatura em 1971, dois anos antes de morrer. As linhas aqui reproduzidas são apenas o primeiro parágrafo do soneto número 22 do extraordinário “Cem Sonetos de Amor”, escrito em 1959.

Atenção para o que ele diz logo na primeira linha: “quantas vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez sem lembrança...” Reparem que Neruda não questiona sua paixão. O que o poeta faz é reafirmar um sentimento, destacando a capacidade de amar, apesar de estar longe – apesar de não ver ou sequer lembrar da mulher amada. Jovenzito, aos 23, Neruda foi nomeado cônsul chileno em Rangum, na Birmânia. Centenas de miles de léguas distante de seu país, jamais deixou de lembrar os costumes da terra natal. O Chile sempre foi destaque nas rodas de conversa por onde quer que passasse Neruda.

Talvez ainda mais do que o Chile, Neruda tenha amado as mulheres. Troquemos o país pelo futebol e deixemos as mulheres no mesmo lugar. O Grêmio, mais do que nunca, está enamorado por sua casa. Nela, vive a donzela cotejada. Anda tão emborrachado por esse amor que não tem olhos para mais nada. “Em regiões contrárias”, como escreveu Neruda, nosso time, quando não rasteja, cambaleia. Vez que outra, pensa em cometer adultério, mas jamais consuma o ato. Agora, a rodada 22 do Brasileiro 09 se aproxima. O soneto 22, não se olvidem, é aquele que revela a devoção a quem noutro pago ficou. Cá estamos, miles de léguas ao sul do Rio de Janeiro. E é direto da capital do Império que nos será dada a maior prova de amor.

Depois do jogo do próximo domingo, o Grêmio baixará no Pampa com a rubrica de postulante ao título. Isso mesmo. Não chamam alguns poetas de loucos? Perdón, Pablo, mas nós torcedores também somos – tal como o senhor era por Matilde quando brindou-lhe com uma centena de poemas. Nós, os loucos que aqui se quedan, aguardam ansiosamente por uma prova de amor de magnitude semelhante. Não pode ser tão difícil. Uns tem o dom transportar sentimentos à ponta da pena onde quer que estejam. Agora diga-nos, caro poeta, por que alguém escreve tão bem sua história num dia e, no momento seguinte, quando vai a outro recanto, passa uma borracha por cima de tudo?

Certas coisas, nem mesmo os mais sábios conseguem explicar. A paixão, creio, Neruda soube descrever perfeitamente. Longe ou perto, amou como ninguém. Queremos uma relação assim. O sentimento, aqui ou lá, não se termina. Precisamos acreditar que vale a pena se entregar à paixão. Precisamos acreditar que ao colocar 40 mil no Monumental fará efeito quando estiveres fazendo tuas visitas. Neruda escreveu uma bela história de amor com La Chascona, a despenteada, como chamava Matilde Urrutia. Criou versos estando longe, e com a mesma destreza de quem tem a fonte de ternura ao seu dispor, ao seu lado, servindo-lhe de incentivo. Domingo, teremos o amor correspondido. Estou convicto de que o Grêmio encarnará Neruda e levará a inspiração consigo.

O detalhe que, se não fosse tão curioso eu nem citaria, está no fato de que Matilde era amante do bardo chileno. Sim. Isso mesmo. Neruda, talvez, só tenha chegado tão longe porque amou no momento certo para amar – ainda que a água onde tenha bebido não fosse a fonte que corria em seu quintal. Reler Confesso que vivi, a sensacional autobiografia de Pablo Neruda, me voy.

Nenhum comentário: